«O desafio que se coloca hoje é alargar o número de cientistas com lugar no sistema e fazê-lo sem recurso à precariedade.
É sabido que em Portugal, ao longo das últimas duas décadas, o número de trabalhadores na área da ciência aumentou significativamente. Todavia, é também sabido que, nos últimos anos, os contratos de docência e as bolsas de investigação se revelaram cada vez mais insuficientes.
O sector vive, por isso, uma crise de emprego, tanto mais séria porque agravada pelo crescimento do desemprego em outros sectores da economia portuguesa e pela diminuição de oportunidades de trabalho em outras universidades europeias, igualmente alvo das políticas de austeridade.
A responsabilidade por este estado de coisas tem vindo a ser assacada ao ministro Nuno Crato e a Miguel Seabra, presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia durante grande parte do ciclo governativo que agora termina. É mais do que justo que assim seja. Dos cortes nos orçamentos das universidades à redução do número de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento, os erros cometidos por um e outro foram mais do que muitos. E, contudo, na boa hora em que este governo cessa funções, importa recordar que alguns problemas do sistema científico português devem ser inscritos num tempo mais longo do que o período da última legislatura.
Na verdade, se foi possível que a acção deste governo debilitasse tão gravemente o sistema científico, tal deveu-se, entre outras razões, à circunstância do mesmo assentar em parte sobre pés de barro. Referimo-nos, em particular, ao facto de o aumento da produção científica no decurso das últimas décadas muito ter dependido da proliferação na universidade de uma variedade de regimes de precariedade laboral, de tal modo que o governo da coligação PSD-PP, no momento em que deixou cair muitos dos investigadores que vinham constituindo o sistema, nem sequer necessitou de os despedir, pois que à época os mesmos tão pouco beneficiavam de um contrato de trabalho. É por isso que, depois das eleições de 4 de Outubro, será preciso fazer diferente do que fez o actual governo, mas será também necessário fazer diferente do que fizeram anteriores governos.
O desafio que se coloca hoje é alargar o número de cientistas com lugar no sistema e fazê-lo sem recurso à precariedade. A tarefa exige a combinação de pelo menos duas soluções. A primeira consiste em reforçar solidamente a verba que o orçamento de Estado reserva ao Ensino Superior. A necessidade deste reforço tem vindo a ser recorrentemente sublinhada pelos reitores, pelos directores das faculdades e pelos presidentes das unidades de investigação. Todas estas chefias universitárias têm sugerido – e bem – que, sem maior investimento financeiro do Estado, não vale a pena perder tempo a discutir o futuro da universidade. Já a segunda solução consiste em garantir uma maior distribuição das verbas destinadas pelo Estado às universidades, possibilidade insuficientemente explorada por aquelas mesmas chefias.
Como combinar estas duas soluções? Por exemplo, através do apuramento de uma fórmula de financiamento público do Ensino Superior que, tendo por base o crescimento da verba total a ele destinada no orçamento de Estado, discrimine positivamente as instituições cujos planos de desenvolvimento estratégico visem três objectivos em simultâneo: o aumento do número de contratos de trabalho, o fim da precariedade dos contratos de trabalho e a eliminação das diferenças de estatuto entre os membros da comunidade académica. Uma tal fórmula de financiamento incitaria as chefias universitárias a canalizarem o grosso do seu orçamento para a abertura de vagas para professores auxiliares ou para investigadores auxiliares, prescindindo da abertura de posições para investigadores coordenadores e principais ou para professores catedráticos e associados, de tal maneira que avistássemos uma universidade com mais e melhor emprego e – o que não é menor – pautada por maior igualdade entre os seus membros.
E, se é bem verdade que desta proposta decorreriam limitações à progressão na carreira universitária, o que poderia conduzir à saída de alguns cientistas rumo a instituições privadas ou a universidades estrangeiras, este efeito seria muito provavelmente compensado por: melhoria da qualidade das relações pedagógicas, devido à possibilidade de diminuição do número de estudantes por turma; aumento do tempo disponível para a pesquisa realizada pelos docentes, com impacto a nível da internacionalização das universidades portuguesas; e intensificação das relações de cooperação entre a universidade pública e outras instituições movidas em torno do bem comum, o que, ademais, teria a virtude de reforçar a legitimidade do aumento do investimento público no sector.»
Catarina Alves Costa (professora auxiliar, FCSH-UNL)
Filipe Carreira da Silva (investigador auxiliar, ICS-UL)
José Neves (professor auxiliar, FCSH-UNL)
Manuela Ribeiro Sanches (professora auxiliar com agregação, FLUL)
Ruy Llera Blanes (investigador principal, ICS-UNL; e investigador de pós-doutoramento, Universidade de Bergen)
(reprodução de artigo de opinião publicado em Público online, de 28/09/2015)
[cortesia de Nuno Soares da Silva]