domingo, 24 de fevereiro de 2013

LISTA B - VALORIZAR O ENSINO

DEEM-ME A VIDA FÁCIL, DEEM-ME A INVESTIGAÇÃO; DEIXEM QUE NÃO ME PERTURBE COM O ENSINO. UMA ATITUDE DESTAS É COMPREENSÍVEL, MESMO NÃO SENDO FACILMENTE PERDOÁVEL.(Ronald Barnett, 1997, trad.)

Tradicionalmente, a relação entre investigação e ensino na vida académica tende a ser conflitual ou nula, o que significa, por exemplo, que o tempo “gasto” no ensino é tempo “roubado” à investigação. Sendo na investigação que assenta a carreira e o mérito dos docentes, o ensino passa para plano secundário. Para alguns esta situação será dilemática, para outros não. Mas quem paga o preço são os alunos.(...)
Valorizar o ensino é, antes de mais, um imperativo moral da universidade. Mas implica mudanças profundas na cultura académica (...).
Muitos discordarão desta perspetiva, continuando a pensar que, no fim de contas, é a investigação que realmente interessa. Como diria Ronald Barnett, essa atitude será compreensível, mas não facilmente perdoável.
Flávia Vieira
(Lista B - Novos Desafios, Novos Rumos - http://um-novosdesafios.blogspot.com)

[TEXTO COMPLETO EM ANEXO]



Anexo:
VALORIZAR O ENSINO

Dêem-me a vida fácil, dêem-me a investigação; deixem que não me perturbe com o ensino. Uma atitude destas é compreensível, mesmo não sendo facilmente perdoável” (Ronald Barnett, 1997, trad.)

Tradicionalmente, a relação entre investigação e ensino na vida académica tende a ser conflitual ou nula, o que significa, por exemplo, que o tempo “gasto” no ensino é tempo “roubado” à investigação. Sendo na investigação que assenta a carreira e o mérito dos docentes, o ensino passa para plano secundário. Para alguns esta situação será dilemática, para outros não. Mas quem paga o preço são os alunos. 
Com o Processo de Bolonha, assistimos à emergência de questões pedagógicas nunca antes equacionadas. Contudo, passados alguns anos sobre a sua implantação, não restarão grandes dúvidas de que o entusiasmo inicial com a pedagogia na universidade se tem vindo a desvanecer à medida que fomos percebendo algumas coisas:
As mudanças foram sobretudo estruturais e formais, algumas apenas cosméticas, com finalidades essencialmente económicas e não pedagógicas.
O desenho de planos de estudo à luz de novas lógicas (nomeadamente, a tónica no tempo de aprendizagem do aluno – ECTS – e a sua distribuição por espaços curriculares – horas de contacto e de trabalho autónomo – e “resultados de aprendizagem”) constituiu um esforço insano de engenharia curricular sem consequências visíveis. Quem se lembra dos dossiês dos cursos?
O “ensino centrado no aluno” torna-se cada vez mais difícil perante a prevalência de turmas numerosas, a redução de docentes, a impossibilidade da tutoria para acompanhar o “trabalho autónomo”, a falta de coordenação na gestão dos cursos, e a inexistência de políticas de formação e de incentivo à inovação (note-se, a este propósito, a falta de ação do Gabinete de Apoio ao Ensino, cujas medidas se têm reduzido quase exclusivamente à generalização do uso da plataforma!).
A avaliação da atividade pedagógica foi-se agigantando, acreditando-se que assim seremos melhores professores (!?). Mas como não está ligada a processos de apoio e desenvolvimento, é pouco mais do que um exercício burocrático sem consequências para o ensino. 
Ensinar tem pouco valor na carreira e mérito dos docentes, que dependem quase só na investigação (aliás, a hipótese de separar “professores” de “investigadores” com base em índices de produtividade já não é novidade entre nós, pressupondo-se que caberia aos segundos garantir a excelência da instituição. Falta acrescentar que o fariam à custa dos primeiros, que garantiriam a existência da instituição, já que sem o ensino não haverá mais nada).
A investigação sobre o ensino superior está nas mãos de uma élite de “especialistas”, desenvolvendo-se à margem dos professores e constituindo mais um nicho de investigação como outro qualquer, sem impacto no ensino. As poucas iniciativas que procuram vulgarizar a investigação pedagógica e promover a constituição de comunidades de prática (“SoTL: scholarship of teaching and learning”) tendem a ser marginalizadas por se desenvolverem em contracorrente face à cultura académica dominante (competitiva, territorial, disciplinarizada).
Enfim, se é verdade que nenhuma reforma opera milagres, também é verdade que muito mais se esperaria de um processo que envolveu a academia num esforço de reorganização do ensino sem precedentes. 
Afinal, o ensino continua a não ser valorizado apesar de Bolonha, e nem sei dizer se o é mais agora do que antes. Sei que havia mais autonomia, menos burocracia a desviar-nos do essencial, e menos hipocrisia nos discursos oficiais, que nos dizem uma coisa quando se exige outra ou quando não há condições para fazer diferente.
Valorizar o ensino é, antes de mais, um imperativo moral da universidade. Mas implica mudanças profundas na cultura académica: reconfigurar o estatuto da pedagogia, concebendo-a como um campo de produção (e não apenas de reprodução) de conhecimento; fomentar a inovação e a investigação das práticas, nomeadamente no seio de comunidades profissionais, disciplinares ou multidisciplinares; desenvolver políticas de formação e medidas de incentivo e apoio ao ensino ao nível da universidade e das UOEI, diretamente relacionadas com os interesses dos docentes; desburocratizar e qualificar os sistemas de avaliação do ensino, com repercussões na avaliação do desempenho e na progressão na carreira.
Muitos discordarão desta perspetiva, continuando a pensar que, no fim de contas, é a investigação que realmente interessa. Como diria R. Barnett, essa atitude será compreensível, mas não facilmente perdoável.


Flávia Vieira

(reprodução de mensagem entretanto distribuída universalmente na rede electrónica da UMinho)

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