sexta-feira, 7 de outubro de 2011

“´Venci o cancro!` O perigo das mentiras piedosas"

«O cancro é uma doença que se possa vencer, como uma gripe forte?

De vez em quando, em revistas da moda ou mesmo em jornais sérios, é dito que alguma personagem conhecida “venceu o cancro”, como se nunca mais se tivesse de preocupar com ele.
No entanto, a medicina sabe que só de pouquíssimos cancros se pode de facto dizer que estão curados. Quanto aos outros, está-se entregue à sorte ou ao que quer que seja. Daí a necessidade de exames de vigilância, pois o cancro, de vez em quando, sabe-se lá porquê, apetece-lhe voltar. Uma das coisas que mais me impressionou nas leituras que fiz (e faço) sobre “morte assistida” (de que resultou o livro Ajudas-me a Morrer?, 2009), foi (é) o facto de encontrar recorrentemente este facto: passados 7, 15, 20 ou 30 anos, o cancro voltou. Quando ainda não passara pela recidiva do cancro da mama, estremecia um pouco: será que?... Depois de ter passado pela recidiva, seis anos depois de o ter “vencido”, pergunto-me que mais mutilações estarão à minha espera e se estarei disposta a submeter-me a elas. Há pouco, uma óptima funcionária da minha universidade disse-me que o cancro voltara a atingir a mãe, 26 anos depois.
Mas, é claro, não estamos em tempos de lembrar a nossa mortalidade (e não é por causa da “crise”...) e temos de ficar pelas histórias cor-de-rosa. Mas serão úteis estas mentiras piedosas?
Para quem tem a sorte de nunca ter passado por um cancro, a ideia pode ser sedutora: “aquilo” é uma doença que se pode vencer, como uma gripe forte, e voltar-se à saúde anterior. Mas quem passou pela experiência do cancro e é metida num follow-up médico até ao fim da vida, ou até ele voltar de forma mais aguda e dar-lhe a morte, sente-se espantada e enraivecida, pois, se essa vitória existe, porque é que vê os médicos assustados ou em pânico, quando não faz exames regulares? E apetece então voltar ao poema do Messias de Händel e dizer não O grave, where is thy victory?, mas O cancer, where is thy defeat?
Apetece-me mesmo falar das consequências políticas destas histórias cor-de-rosa, pois ajudam a construir uma sociedade dessolidária em relação a quem teve cancro ou ainda não morreu dele. Pior ainda se a “chaga” não se vê, se a pessoa, vestida, parece não ter qualquer deficiência e se move com aparente facilidade. Quem sabe então das dores que essa pessoa pode atravessar, quem se interessa por saber com que sequelas fi cou, em que limbos físicos (para já não falar de outros) é que vive, apesar de o limbo ter sido abolido teologicamente pela Igreja Católica?
Há tempos, uma operária que também “venceu” o cancro da mama, falou-me em desespero da insensibilidade do patronato, que continua a colocá-la em serviços em que está constantemente a partir a prótese externa que usa (e que é cara!). Entendo que a minha jovem aluna me tenha admoestado, quando comentei numa aula: “Como sabem, a prazo estamos todos mortos!” “Não diga isso, professora!”, disse ela. Chamada à realidade pelos colegas, o seu princípio de prazer ainda a fez defender-se: “Está bem, mas eu vou ficar para semente e desmentir essa frase!” Mas deve a sociedade incentivar um tipo de pensamento semelhante?
Às 22h das sextas-feiras, quando uma colega minha que já teve cancro e recidiva sai dos complexos pedagógicos para lá voltar nas segundas, lembra-se sempre com ironia desta frase de “vitória”: como “venceu” o cancro por duas vezes, deve ser considerada mais forte do que qualquer outro colega. Por isso, deram-lhe o pior horário da semana, aquele que, em princípio, não consegue trocar com ninguém. O Victory, why is your taste so bitter?»

Laura Ferreira dos Santos
[Docente de Filosofia da Educação da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN (laura.laura@mail.telepac.pt)]

(reprodução integral de artigo de opinião publicado no jornal Público, em 30 de Janeiro de 2011)

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