segunda-feira, 10 de outubro de 2011

"Cancro: devem os médicos falar de estatísticas de sobrevivência?"

«Antes de se morrer de cancro, morre-se por vezes do susto de o ter ou poder ter. E alguns suicidam-se

Há dez anos, tive cancro da mama. Quando já pensava que ele se tinha esquecido de mim, manifestou-se de novo, em 2007. Fiquei sem o peito.
Em Junho deste ano veio a notícia inesperada: tinha metástases ósseas e uns nódulos pulmonares considerados "suspeitos".
Consultei um oncologista reconhecido e afável. Depois de se inteirar da situação, disse-me, como que para me sossegar: "Mas "isto" ainda dá tempo". Ansiosa, perguntei: "Quanto, Dr.?". "Bom", disse-me ele no seu tom delicado e afável, "aí uns três anos". Perplexa, comentei: "E acha que três anos é muito?". O médico, cuja afabilidade quero de novo ressaltar, deve ter visto então claramente que, como qualquer pessoa "normal", eu queria tempo. Por isso, esticou os três anos para cinco e, perante uma reacção minha semelhante à primeira - "Mas cinco anos acabam amanhã, Dr.!" -, lá concedeu a hipótese de mais uns anitos, cuja qualidade se depreendia que iria ser má. De modo que, de repente, vi-me a seguir os raciocínios do médico e a fazer a única pergunta que, embora estúpida, pois cada caso é um caso, parecia a mais adequada ao contexto: "E o fim de vida? É muito difícil?".
Tempos depois, uma experiência semelhante era repetida com outro oncologista reconhecido. Desta vez, no entanto, as notícias eram ainda mais assustadoras: "Sem tratamento, dentro de um ano está morta!". A seguir, lá vinham os cinco anos, após os quais tudo era muito cinzento.
No IPO, não sei se por política da casa ou por causa de outro paradigma de saúde, a médica recusou-se a falar de estatísticas. Ainda bem. Sinceramente, não sei o que me tem inquietado mais: saber que tenho metástases ou saber que há quem me dê apenas três ou cinco anos de vida. Mesmo sendo eu de carácter "rebelde", esses números bailam na minha mente de forma ameaçadora. Visceralmente, assustam-me mais do que as metástases, temendo que esses números tenham desencadeado em mim uma "programação cerebral" (o que quer que isso seja) que me levará a morrer nos prazos mencionados.
À minha volta, penso ter encontrado exemplos de uma "programação" semelhante: o senhor que morreu de AVC dois dias depois de lhe dizerem que tinha uma recidiva, a senhora de 80 anos a quem ainda queriam fazer uma mastectomia e "tratamentos" e que morreu durante o sono pouco tempo depois desta "notícia", no dia de aniversário do seu casamento, etc., etc. Também soube de um caso ao contrário: deram seis meses a outro senhor, ele recusou-se a fazer tratamentos para um tempo de sobrevivência tão irrisório e viveu mais 12 anos até ter um cancro da próstata de que recuperou bem (tem agora mais de 70). Parece-me, portanto, que, antes de se morrer de cancro, se morre por vezes do susto de o ter ou poder ter. E alguns suicidam-se.
David Servan-Schreiber, a quem davam seis meses de sobrevivência por causa de um cancro cerebral, durou 20 anos. O seu interesse não foi saber onde se situavam os picos da mortalidade estatística, mas o que levava certas pessoas a permanecerem nas "caudas", o que fazia com que durassem muito mais tempo do que as outras ou não voltassem a ser atacadas pelo cancro. As estatísticas, vamos sabê-las à Internet. Ao médico, creio, compete desmistificá-las e insistir sempre na particularidade de cada caso. O que não deve é ajudar o cancro a destruir a pessoa, ao ponto de ela já começar a pensar em encomendar o caixão, antes de mais uma subida do IVA. Infelizmente, em vários casos haverá tempo para as notícias verdadeiramente sombrias e inescapáveis.
Se há "emoções" que curam, porque é que não haverá outras que matam? António Damásio, ou outro Damásio que se lhe siga, acabará por prová-lo imagiologicamente, que é das poucas provas que esta medicina aceita. Até lá, haja prudência.

Laura Ferreira dos Santos
(Docente da Universidade do Minho e membro da Comissão de Ética da ARSN - laura.laura@mail.telepac.pt)

[artigo de opinião publicado no jornal Público, em 10 de Setembro de 2011, p. 32.]

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