«Não se pense a Universidade como uma panaceia. Veja-se a quantidade de licenciados, mestres e até doutores que se encontram por aí desempregados ou subempregados
1. Leio sempre no PÚBLICO os artigos do meu colega Diogo Ramada Curto (RC), desta vez (em 27 de Dezembro) sobre as Universidades e a Educação no Brasil, onde refere as palavras polémicas de Lula da Silva (LS), do Reitor da Universidade de Coimbra, João Gabriel Silva (JGS), e do deputado do CDS Nuno Melo (NM). Tendo em conta os estudos que venho fazendo desde há muito, achei que deveria contribuir para o debate com alguns esclarecimentos.
Num ponto estamos certamente de acordo e repeti-o, mais uma vez, no meu último livro (História… Que História?): a história é sempre manipulável e deve ter-se em conta que o historiador deve procurar colocá-la (História com H maiúsculo) no plano da objectividade, lendo as fontes, conhecendo a bibliografia actualizada, interpretando criticamente os documentos, interrogando e interrogando-se. Mas quanto à manipulação do passado — sobretudo com esta onda de romances históricos e textos de divulgação que por aí surgem — pouco há a fazer. Creio mesmo que pior do que isso é o (quase) silêncio que, em certos casos, cai sobre a História, como se viu na abolição dos feriados cívicos, ou, noutro campo, arrumando para um canto das livrarias as obras dos autores que sobre ela têm procurado trabalhar com rigor. Quando ela é manipulada, ao menos pode merecer a nossa reflexão crítica.
Resumo, embora coadas pelos meus próprios juízos, as várias intervenções que nos descreve RC e o que sobre elas nos diz:
LS sabe de política do Brasil e soube erguer o seu PT a partido do poder, agora contestado, mas não tem obrigação de saber História. Opina como político e com os exageros próprios de quem discursa, e, assim, em Dezembro, comparou o nosso mundo universitário e o brasileiro, que só fundou a primeira Universidade em 1920, ao da América de língua e cultura espanholas, onde foram fundadas universidades desde o século XVI. Ter-nos-á considerado, em parte, culpados pela falta de cultura no Brasil, onde agora, felizmente, se multiplicaram universidades e outras escolas.
NM saberá de política pela via da sua prática militante, ligada a uma ideologia que se desejaria democrata cristã. Contra-atacou (com a sua “sabedoria wikipediana”, segundo RC), também neste último mês de Dezembro, dizendo que são do início do século XIX as bases da Universidade brasileira e que se deve a Portugal a unidade do Brasil e a sua grandeza geográfica.
JGS é engenheiro de formação, mas normalmente apela — ou deveria apelar por força da sua condição — para as ideias sempre interrogativas dos seus colegas de outras áreas do saber, como a História. Terá afirmado, em Setembro, bem antes das opiniões de LS, que se deve aos bacharéis de Coimbra, muito anteriormente a 1822 (data da independência), o sentido de unidade cultural e nacional do Brasil, muito diferente da fragmentação da outra América latina, onde afinal se foram criando várias universidades ao longo do tempo.
Finalmente, o próprio historiador RC entrou no jogo das opiniões, discordando dos juízos do deputado do CDS e do Reitor de Coimbra e aproximando-se da opinião do ex-Presidente do Brasil. Procurou interpretar afirmações deste, que foram proferidas numa conferência realizada a convite do El País: terá tentado, afinal de contas, tão-só, demarcar-se das “elites brasileiras”, “insinuando que estas se limitavam à reprodução social das lógicas da desigualdade herdadas dos tempos coloniais”, tentando ele, ao invés, alargar o tecido universitário e educacional do Brasil.
Em suma, segundo o meu colega — se bem o soubemos interpretar — temos dois tipos de atitudes, uma revisionista e nacionalista, de que é preciso ter cuidado, e outra que reflecte uma visão progressista e “anticolonialista”, que deve ser respeitada.
2. A minha posição não pretende intervir no debate de simples opiniões, mas pretende, no entanto, como historiador, na continuação de RC mas de outro modo, reflectir e interpretar o passado e interrogar-me sobre o sentido dessas mesmas opiniões.
Em primeiro lugar, considero, na verdade, um problema interessante saber porque é que o Brasil se manteve como espaço unido, numa extensão (por assim dizer) “continental”, ao passo que os países de língua e cultura espanholas se fraccionaram por uma imensidade de espaços. Isso terá que ver com a diversidade dos próprios espaços geográficos ocupados pelos espanhóis, que, como se sabe, na sua forma de “união dinástica” Portugal-Espanha, se estenderam mesmo, durante 60 anos (1580-1640), ao próprio Brasil, assim como, na Europa, o seu império foi da Flandres à Áustria e de Portugal à Alemanha. Mas também resultará, obviamente, de políticas “coloniais” ou “ultramarinas” diferentes. A Espanha criou espaços mais autónomos baseados nas grandes famílias nobres, reflectindo as regiões diferentes do espaço ibérico e europeu, e na poderosa organização eclesiástica secular e das ordens e congregações religiosas, ao passo que em Portugal se verificou uma maior centralidade estatal, resultante de um país mais pequeno que muito cedo definiu as suas fronteiras europeias e se foi alargando para o “ultramar” numa lógica de unidade territorial dirigida pelo rei, embora conjugando a Igreja, a Nobreza e a pouco poderosa Burguesia. Mas o que importa, no caso, é saber como é que essa unidade se reflectiu não só na formação de um Reino Unido de Portugal - Brasil (1815-1822, com antecedentes desde 1808), mas na influência significativa dos bacharéis de Coimbra na formação da “unidade”, mesmo depois da independência do país irmão. Devo dizer que uma tese de doutoramento realizada em Coimbra — de Ruth Gauer (A influência da Universidade de Coimbra na formação da Nacionalidade Brasileira, 1995) — tentou aproximar-se deste problema e da sua resolução. Penso, no entanto, que era preciso mais para se chegar a uma interpretação segura, pois seria necessário seguir a política do Estado Moderno português e o currículo desses bacharéis no quadro político do Brasil “colonial” e independente.
Em segundo lugar, é necessário ter em conta que as “universidades” dos séculos XVI e XVII criadas pelos espanhóis são universidades da Contra-Reforma e da Reforma Católica, dominicanas ou jesuíticas, e não exprimem a condição de universidades no seu sentido corporativo (significado que tem a palavra “universidade”) e, depois, de sentido régio. Portugal manteve, na verdade, apesar de ser um país integrado na lógica contra-reformista e reformista católica, uma política estatista, que se veio a consolidar no século XVIII, numa concepção pré-iluminista e iluminista, joanina ou josefina. Já antes da famosa Reforma do Marquês de Pombal — que extinguiu, em 1759, com a expulsão da Companhia de Jesus, a outra única universidade existente no território português, desde 1559, a Universidade jesuítica de Évora — a simbologia existente na Biblioteca fundada no tempo de D. João V é reveladora da imagem estatal dos saberes, mesmo a Teologia, encimados por uma coroa real, sob o olhar do rei, que, num quadro, domina o “espaço da livraria”.
Em terceiro lugar, deve salientar-se que se a concepção iluminista apontava para a criação de universidades nos grandes burgos (ao contrário da filosofia renascentista), o que deveria ter levado a Universidade a instalar-se em Lisboa (ou no Porto), ou a criar ali novas universidades, não foi essa a política do Marquês. Todavia, começou a fundar na capital novas unidades escolares de educação, de cultura, de arte e de ciência, processo que veio a ser continuado em reinados seguintes e no liberalismo. Tal entendia-se porque as universidades como corporações deixaram de estar em voga. E isso sucedeu sobretudo por influência da Revolução Francesa, com a extinção das universidades e da sua substituição por escolas autónomas, no tempo da Convenção (1792-1795). Pode sintetizar-se essa posição na afirmação do bacharel médico Rebelo de Carvalho em 1823, no contexto da revolução liberal portuguesa e no âmbito do debate sobre a instrução, com o seu extremismo de juventude: “A Universidade não deve ser reformada; precisa de ser abolida; e tratar-se quanto antes da Organização de Escolas Centrais, independentes umas das outras, onde se ensinem as Ciências, as Artes e as Letras, debaixo de um plano adequado ao Sistema Constitucional, e livre de todo o aparato fradesco, ou monacal, que faz a base desta Gótica Instituição”.
Nesta sequência, e finalmente, em quarto lugar, recorde-se que, como em Portugal, noutra situação política e cultural, foram surgindo no Brasil, desde 1808 e depois da independência, várias escolas militares, de direito, médico-cirúrgicas e de farmácia, de minas, etc., que vieram, em certos casos, a formar a base — pelo menos como tradição histórica — de universidades. Mas não se formou nenhuma Universidade senão em 1920. E a “Universidade do Rio de Janeiro” foi pouco mais, inicialmente, do que uma representação cultural.
3. Problema ou problemas tão complexos só justificam, quando muito, uma opinião política de LS, que até é doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra e por quem tenho consideração política. Apenas como opinião deve ser considerada. E assim a entendeu, com certeza, a seu modo, o meu colega RC.
Mas deixem-me apresentar uma simples e final observação pessoal: se, na verdade, só depois de um século da independência se formou uma Universidade no Brasil e só agora, passados cerca de 190 anos, há ali uma política social de Universidade e de Ensino, cortando o carácter oligárquico da sociedade do Brasil, dificilmente se deve à colonização portuguesa. A aceitar isso, grande obra desempenhou LS para virar a linha de rumo da política de Educação! Seja como for — independentemente da sua opinião sobre a história — muito terá feito.
Já agora, porém, acrescento mais uma ideia: é necessário que a sociedade se forme criticamente e na diversidade, através de universidades e cursos superiores, no Brasil, em Portugal, na Europa e no Mundo. Mas não se pense aUniversidade como uma panaceia. Veja-se a quantidade de licenciados, mestres e até doutores que se encontram por aí desempregados ou subempregados nos call centers e nas caixas das “grandes superfícies”! Democratização do ensino não é massificação. Por isso nos perguntamos constantemente: que Universidade e que sistema de Ensino queremos constituir? O título que demos a um livro, eu e o meu colega Ângelo Brigato Ésther (de Juiz de Fora), foi por isso — Que Universidade?»
LUÍS REIS TORGAL - Historiador, professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
(reprodução de artigo de opinião PÚBLICO online, de 01/02/2016)
[cortesia de Nuno Soares da Silva]
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