sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

"Entre pessoas sérias, há sempre outras sem ética, que fazem o seu percurso de forma amoral"

«FELISBELA LOPES EXPLICA DEMISSÃO DA REITORIA DA UNIVERSIDADE DO MINHO
Felisbela Lopes nasceu a 3 de Agosto de 1971 em Braga. Começamos com este apontamento biográfico, porque queremos vincar uma mulher que reconhece as marcas que o seu tempo e a sua cidade deixaram nela. Doutorada em Informação Televisiva, é autora de vários livros e artigos científicos ligados ao universo da “caixa que mudou o mundo”. À [revista] "Cidade 21" conta por que é que deixou de ser pró-reitora da UM.
-- Como lhe surgiu esta dedicação ao jornalismo e à investigação?
-- Surgiu por acaso. Esta minha integração no campo do jornalismo surgiu em 1989, quando fui desafiada a trabalhar na Rádio Universitária. Na altura, tinha terminado o ensino secundário. Passados poucos meses, tive outro desafio que foi o de integrar a equipa que criava na altura o jornal Público. Estávamos em 1990. Trabalhei no Público durante cinco anos, acumulando esse trabalho com os meus estudos na universidade. Fui sempre estudante-trabalhadora. Fiz toda a licenciatura em paralelo com a minha atividade no jornal Público, que me ajudou a ser a aluna que fui. Acabei com a melhor média da licenciatura e devo isso ao Público. Quando terminei o curso no Instituto de Letras e Ciências Humanas, concorri a uma vaga para a categoria de assistente estagiária no Instituto de Ciências Sociais, entretanto aberta pelo respetivo departamento de Ciências da Comunicação. Enquanto decorria o concurso, ainda dei aulas numa Escola Secundária de Guimarães. Ganhei o concurso e entrei na Universidade do Minho como docente e investigadora em 1994. Estou aqui há 20 anos.
-- Por que é que o assunto televisão começou a interessar-lhe?
-- Na altura em que era jornalista do Público, ia acompanhando com bastante interesse as discussões à volta do serviço público. O mundo dos jornais já era para mim relativamente conhecido; o da televisão não. Era muito jovem, tinha 23 anos, portanto, pertencia a uma geração que tinha crescido sobretudo com a TV. Sempre achei que a televisão tinha uma grande centralidade na nossa vida. Ora, quando chegou a altura de escolher uma área de investigação, comecei a constatar que o campo dos estudos televisivos não estava muito desenvolvido na academia portuguesa. Pensei que poderia ser uma boa aposta. Perspetivando o meu percurso, vejo que, a determinada altura da minha vida, fui começando etapas a partir do zero: o trabalho na rádio, na Universidade, os estudos em televisão... Isto desfaz a ideia feita de que só conseguimos fazer algum caminho, se conhecermos alguém. Eu não conhecia ninguém, quando iniciei esses caminhos.
-- É esse o segredo do seu sucesso?
-- Não há milagres. O sucesso faz-se de trabalho. Há pessoas que conquistam isso através de outras formas, mas, se quisermos que esse processo seja duradouro, ele só subsiste exclusivamente através do trabalho. Acredito nisto com muita força. E digo permanentemente isto aos estudantes ao longo destes 20 anos. Digo-lhes que já passou o tempo de serem bons ou muito bons, agora é necessário serem excelentes e isso conquista-se através do trabalho. Trabalho dedicado, persistente e sério. Esta é a mensagem que temos que transmitir às gerações mais novas: a seriedade e a verdade acabam sempre por triunfar.
-- Ao longo destes 20 anos viu esses valores a perderem-se nas redações e nos meios que frequenta?
-- Acho que não devemos generalizar. No campo do jornalismo, há jornalistas muito competentes e de grandes qualidades. Mas acho que há menos oportunidades. Eu sou de uma geração que teve todas as oportunidades para vingar. Quando tinha 17 anos, fui trabalhar e tinha um salário. Quanto tinha 22 anos e terminei o curso, consegui ganhar um concurso para trabalhar numa universidade. Pertenço a uma geração que nunca pagou propinas na licenciatura, no mestrado, no doutoramento. Sou de uma geração hiperprivilegiada. Seria muito mau olhar para as gerações mais novas e ter um discurso de superioridade intelectual. Mas é evidente que, entre pessoas sérias, há sempre outras sem ética, que fazem o seu percurso de forma amoral.
-- E já se sentiu afectada por isso?
-- Já, aqui e ali. Mas as maçãs podres não me tiram o sono.
-- Está a falar da cessão de funções como pró-reitora? Foi uma decisão sua?
-- Não foi uma decisão minha. Foi uma decisão do reitor.
-- E por que é que isso aconteceu?
-- Porque o reitor da Universidade do Minho permitiu que acontecessem determinadas coisas dentro do gabinete de comunicação que não deviam acontecer. Eu tentei resolvê-las, mas não tive o apoio que a situação exigia. Dado não ter condições para trabalhar de forma séria, tive de sair.
-- Foi isso que a levou a tomar essa decisão.
-- Quando cheguei à reitoria, em 2009, o gabinete de comunicação era quase uma inexistência. Construi uma equipa completa, uma visão, uma missão e uma estratégia. Os resultados, medidos pela comunicação interna e pela projeção da Universidade do Minho no espaço público, estão à vista e não preciso de ser eu a fazer essa avaliação. Por isso o reitor me convidou para um segundo mandato, há um ano. Recentemente, com a minha equipa motivada em torno dos novos projetos do mandato, o reitor parece ter divergido da estratégia e da missão do gabinete, por razões que, à data, me escapavam.
-- Sempre expôs os seus pontos de vista sem medo?
-- Naturalmente. Eu não trabalho com medo, trabalho com convicção e, sobretudo, com seriedade.
-- Esse processo foi demorado ou foi algo que aconteceu de repente?
-- Para mim, foi repentino. Ao que consta na Universidade e na Reitoria, há uma maçã podre que estava já a fazer o seu caminho.
-- Estava à espera disso?
-- Não. Mas a vida sempre nos surpreende.
-- Foi um choque para si.
-- Foi. Não pela saída, porque numa reitoria está-se sempre de passagem. Chocou-me constatar a vulnerabilidade de um reitor. Na verdade, faz-me pena.
-- Já está restabelecida?
-- Quando me interessei pelas reais motivações do reitor e da funcionária que ficou à frente do gabinete, obtendo alguma da informação que hoje circula abundantemente na Universidade, fiquei automaticamente restabelecida. É uma questão de superioridade ética e moral. Depois, sou professora Associada com Agregação e não dependo dos caprichos de ninguém, porque construi uma carreira e uma posição com base no mérito.
-- Acha que foi defraudada?
-- Obviamente. Então há um ano, há um reitor que me convida para fazer um mandato de 4 anos e passados 11 meses diz que eu fui excelente, que o trabalho está feito e que me posso ir embora?! O que vejo hoje é um gabinete de comunicação transformado num gabinete de eventos e esse não é certamente um lugar para mim.
-- Quando se soube da sua saída do corpo da reitoria, falava-se numa carreira politica.
-- A explicação para a minha saída está no interior da reitoria. Toda a gente no Largo do Paço (Reitoria da Universidade) sabe por que saí, do senhor da segurança que está à porta até às secretárias, passando por todos os elementos do gabinete de comunicação.
-- Não a incomoda o burburinho que se gerou com a sua saída?
-- Incomodada? Nada, estou mesmo muito feliz. Agora, há quem esteja muito instável. Mesmo muito instável.
-- E voltaria agora?
-- A Universidade do Minho é a minha casa. Servirei sempre esta instituição, mas isso não significa servir aqueles que a instrumentalizam.
-- Está mesmo magoada…
-- Pelo contrário, estou muito bem com a minha consciência.
-- A sua intervenção pública vai continuar a passar apenas pelo comentário e conferências?
-- Tenho na RTP um espaço de comentário à imprensa há oito anos. É ao sábado no Bom Dia Portugal. Agora comecei um outro comentário à actualidade internacional no Jornal 2, à quinta feira à noite. Sou colunista na revista Notícias TV e cronista do Correio do Minho. Estou agora a aceitar desafios a que não tinha dado uma resposta positiva por falta de tempo. Eu gosto muito das redações e tenho muitas saudades desses ambientes onde se produz informação jornalística.
-- Mas vê-se a voltar?
-- Vejo-me a voltar assim: em forma de comentário. Aquilo que gosto mais é de todo o trabalho de preparação das rubricas por que sou responsável. As pessoas nem imaginam a equipa que segura uma emissão informativa na TV e toda a preparação que é necessária! Fazer parte dessas equipas é muito gratificante para mim e uma enorme fonte de aprendizagem. Adicionalmente, tenho a grande vantagem de trabalhar com as pessoas que são minhas amigas. De outra forma não aguentaria estar há oito anos a levantar-me todos os sábados às 5h da manhã...
-- Perante este cenário de crise no país e no jornalismo, como é que incute esperança aos seus estudantes?
-- Dizendo-lhes que têm de vingar pela consolidação dos conhecimentos, pela garra ao trabalho, pela seriedade que devem colocar naquilo que fazem. O jornalismo está em crise: as redações estão subdimensionadas, porque não há dinheiro. Não há receitas e não há espaço para o investimento. Adicionalmente os jornalistas hoje debatem-se com um conjunto de fontes organizadas que nem sempre agem com rigor, com transparência... E como não há muito tempo, por vezes sucumbe-se à tentação de ouvir apenas uma das partes: aquela que tem mais meios para chegar às redações. É importante formar jornalistas para o respeito do princípio do contraditório, que obriga a ouvir todas as partes envolvidas em determinada questão. Há que respeitar isso sempre. Ao multiplicar fontes, estamos a multiplicar ângulos. Não há uma verdade, há verdades. É preciso também formar jornalistas numa ética inabalável. Eu sei que frequentemente um jornalista violenta a sua consciência ao fazer determinado trabalho, mas, pelo menos, é preciso ter essa perceção de que se está a ultrapassar uma linha que deve ser preservada. É importante que as pessoas saibam que podem fazer diferente.
-- Sente que os seus alunos saem com esses valores daqui?
-- Sinto. O feedback que nós temos das redacções é que os nossos alunos se distinguem por apresentarem princípios éticos bem consolidados. Nós, enquanto professores, preocupamo-nos muito com isso.
-- O mundo por onde se movimenta – do comentário, da investigação e do corpo docente da universidade – ainda é marcadamente masculino? Passou por algum tipo de discriminação?
-- Não, nunca. No entanto, sei que as mulheres têm menos oportunidades no mercado de trabalho, embora o jornalismo e o ensino na universidade agora sejam mais femininos. Elas são mais, mas são eles ocupam os lugares de poder. Quem decide são, sobretudo, homens. Somos uma sociedade ainda muito tradicional. Mas mesmo com o poder concentrado no masculino, eu nunca senti que tivesse menos oportunidades. Não senti, porque trabalho há mais de 20 anos. Já é algum tempo. Talvez uma jovem hoje possa ter uma perceção diferente.
-- Ainda há barreiras para quem quer ser mãe e profissional de excelência?
-- Eu tenho um filho de dois anos e meio. O infantário do meu filho fecha às 18h30. Se eu não tiver apoio (a minha retaguarda familiar é circunscrita ao meu marido e à minha mãe), tenho de deixar de trabalhar. Se for a Lisboa de manhã, chego a Braga depois do jantar e o meu filho não pode ficar na rua, se não tiver uma ajuda. Essas dificuldades sentem-se todos os dias, todos os dias uma mãe que trabalha se sente dividida entre as obrigações profissionais e o seu papel de mãe.
-- A Felisbela foi mãe relativamente tarde.
-- Sim, engravidei aos 39 anos.
-- Foi a vida profissional que a travou?
-- Não. De todo. Eu nunca faria essa opção! Tudo aconteceu por acaso. Acho que sou uma mulher com sorte: engravidei quando quis engravidar, trabalhei sempre durante a gravidez sem reduzir o ritmo com que costumava fazer as minhas atividades, a gravidez correu muito bem, estive com o meu filho os três primeiros meses de vida, altura em que ele foi para o infantário e eu retomei o meu trabalho normalmente. Nunca senti que um filho subtraísse nada. De forma alguma. Um filho vem somar. Nunca subtrair.
-- Qual é a sua relação com a cidade de Braga?
-- É uma relação umbilical. Acho que sou incapaz de deixar de viver aqui. Quando vou a Lisboa, tento sempre marcar tudo no mesmo dia para voltar a Braga à noite. Eu gosto da cidade, mas gosto sobretudo das pessoas. Sou muito enraizada. Gosto de ser e estar aqui.
-- Como costuma passar o Natal? É uma época importante para si?
-- Eu sou católica convicta. Fico um bocadinho tonta com tudo o que se passa à volta do Natal.
Não compro muitos presentes. Compro para a família mais próxima e para dois ou três amigos. Partilho com alguns a ideia de não oferecer presentes para o Natal não se converter numa corrida desenfreada às compras. Mesmo com filho pequeno, a ideia dos presentes continua a não me entusiasmar. Como sou católica, gosto de olhar para isto como uma época de renascimento. É importante darmos espaços para renascer. E tenho pena de no Natal não abrir mais espaço para o silêncio. É preciso por vezes calar-nos para fazer falar o essencial das nossas vidas.
ADN
Clube de futebol
Eu sou do Sporting de Braga, embora perceba pouco de futebol.
Prato predilecto
Aqueles com que o meu marido me brinda.
Hobbies
Ver televisão, sobretudo informação, viajar e ler.
Livro
Todos do Vergílio Ferreira.
Música
Portuguesa contemporânea.
Vício
A televisão (risos).»

(reprodução de texto de entrevista Revista "Cidade 21", Dezembro 2014, texto de Catarina Castro Abreu, fotografias de Rui Silva)

[cortesia de Nuno Soares da Silva]

Sem comentários:

Enviar um comentário