A democracia goza de má fama no nosso país e as universidades têm especial responsabilidade na matéria. A democracia não é, como vulgarmente se diz, sem reflectir, o pior regime que se conhece com a excepção de todos os outros. Não se pode ser mais cruel para um regime que, bem vistas as coisas, é o melhor de todos porque é o único que tem por base o respeito pelas pessoas, o respeito pela dignidade da pessoa humana.
Acresce ainda que é o regime que, devidamente praticado, tem a possibilidade de encontrar as melhores soluções para a comunidade onde é praticado, pois exige que os cidadãos sejam devidamente informados (e sabemos como o poder tende a esconder a informação), que haja debate aberto e livre sobre os assuntos públicos, deliberação fundamentada e subsequente execução ( por vezes esquece-se que democracia é execução e que uma deliberação democrática não executada é desrespeito pela democracia), continuando depois com um processo de avaliação da execução para eventual tomada de novas decisões.
Tenha-se ainda em conta que da democracia faz parte o mérito. Isto é, o regime democrático para escolha de determinados lugares que exigem capacidade e competência (função pública e nomeadamente professores, médicos e juízes) tem uma regra fundamental: a escolha pelo mérito. A escolha por mérito, aferida por concurso, é o método que resulta da Constituição da República Portuguesa para o acesso à função pública (artigo 47.º, n.º 2). A democracia tem de respeitar esta regra. Através dela todos os cidadãos estão em pé de igualdade para exercer tais funções e a escolha tem como critério as qualidades da pessoa para exercerem as funções em causa. Opor democracia e mérito é esquecer esta importante dimensão da democracia.
O que a democracia tem de muito particular e em que é “pior” que todos os outros é a exigência. A democracia é o mais exigente dos regimes, pois precisa de cidadãos não de súbditos. Cidadãos atentos ao modo de governar. E ser cidadão é muito mais difícil do que ser súbdito. A democracia testa-se na prática e, depois do que dissemos, importa ver se assim é, se ela existe efectivamente.
A experiência que temos a nível nacional é má. O parlamento tem dado péssimas lições de democracia, pois vemos e aturamos debates que causam repulsa. Os que estão no poder afirmam que fazem tudo bem e atacam a oposição que traria a desgraça se fosse poder. A oposição faz o mesmo, ao contrário. É raríssimo por parte da maioria reconhecer sem reservas um erro e a oposição faz o mesmo, não admitindo, sem reservas, uma coisa bem feita. Como queremos que tenhamos o devido respeito por uma tal instituição?
Também a nível local (e também a nível das regiões autónomas) a democracia deixa muito a desejar: os locais onde se tomam as principais decisões a nível local (desde logo as assembleias municipais), reproduzem, muitas vezes para pior, os vícios parlamentares. A cultura da livre circulação da informação, da responsabilidade, da prestação pública de contas, são maltratadas nas principais fontes da nossa democracia.
Restam as universidades. Estas têm hoje um regime de governo, nomeadamente ao mais alto nível, que cumpre exigências da democracia. Tem um órgão deliberativo máximo que é o conselho geral constituído por representantes democraticamente eleitos pelos professores, pelos estudantes e, em regra, também pelos funcionários. A estes acrescem cerca de 30% de elementos externos (personalidades de reconhecido mérito) que são cooptados pelos eleitos e assim estão legitimados democraticamente, enriquecendo o órgão.
Cabe ao conselho tomar as principais deliberações quase todas sob proposta do Reitor e que este deve depois executar. Ora este órgão pode (deve) dar exemplo de democracia, exemplo que sirva para o país. E tem obrigação disso, pois se trata da instituição nacional que tem mais responsabilidades. Quando falamos de universidades, falamos de pessoas que exactamente por serem universitários, têm especial responsabilidade cultural e cívica.
Por isso, as atenções devem estar voltadas para o funcionamento da democracia nas universidades, desde logo ao nível do seu órgão máximo, observando os passos que caracterizam a democracia: divulgação da informação, debate dos assuntos que precisam de ser resolvidos, deliberações devidamente fundamentadas, publicidade das mesmas, execução e apreciação da execução (prestação de contas).
É assim que se passa? Esta experiência de governo democrático das universidades decorre desde há dois anos e importa verificar o que se tem passado. Mas, estranhamente, aqui a informação falta. Dificilmente encontraremos um lugar onde a possamos encontrar. Não há, por exemplo, relatórios sobre o funcionamento dos conselhos gerais. E deveria haver.
Mas o que mais estranho pode suceder, do ponto de vista democrático, é que haja universidades públicas que queiram colocar o poder último nas mãos de um enigmático “conselho de curadores”, órgão composto por cinco elementos de elevado mérito, nomeados pelo governo, ainda que sob proposta da Universidade. Para isso não se importam de passar ao regime fundacional (“falsas fundações”, aliás, como bem refere Vital Moreira, pois não possuem um património do qual possam viver).
Pode haver razões (e boas razões, porventura), mas razões democráticas não serão seguramente. Ao que se afirma, são razões financeiras. A submissão à tutela de um conselho de curadores é o preço por uma autonomia financeira, prometida pelo governo. É uma exigência pelo menos estranha. É assim algo como: vendam a autonomia democrática se quiserem ter mais dinheiro. Será que o governo e o parlamento também pensam que a democracia é o pior dos regimes, com a excepção de todos os outros?
António Cândido de Oliveira
Professor da Universidade do Minho
[Reprodução de anexo de mensagem entretanto distribuída universalmente na rede electrónica da UMinho pelo seu autor, com o seguinte texto de encaminhamento:
Porque o debate é preciso, tomo a liberdade de enviar, com pequeníssimas modificações, texto saído hoje no jornal "Público".
Com as melhores saudações,
António Cândido de Oliveira]
Acresce ainda que é o regime que, devidamente praticado, tem a possibilidade de encontrar as melhores soluções para a comunidade onde é praticado, pois exige que os cidadãos sejam devidamente informados (e sabemos como o poder tende a esconder a informação), que haja debate aberto e livre sobre os assuntos públicos, deliberação fundamentada e subsequente execução ( por vezes esquece-se que democracia é execução e que uma deliberação democrática não executada é desrespeito pela democracia), continuando depois com um processo de avaliação da execução para eventual tomada de novas decisões.
Tenha-se ainda em conta que da democracia faz parte o mérito. Isto é, o regime democrático para escolha de determinados lugares que exigem capacidade e competência (função pública e nomeadamente professores, médicos e juízes) tem uma regra fundamental: a escolha pelo mérito. A escolha por mérito, aferida por concurso, é o método que resulta da Constituição da República Portuguesa para o acesso à função pública (artigo 47.º, n.º 2). A democracia tem de respeitar esta regra. Através dela todos os cidadãos estão em pé de igualdade para exercer tais funções e a escolha tem como critério as qualidades da pessoa para exercerem as funções em causa. Opor democracia e mérito é esquecer esta importante dimensão da democracia.
O que a democracia tem de muito particular e em que é “pior” que todos os outros é a exigência. A democracia é o mais exigente dos regimes, pois precisa de cidadãos não de súbditos. Cidadãos atentos ao modo de governar. E ser cidadão é muito mais difícil do que ser súbdito. A democracia testa-se na prática e, depois do que dissemos, importa ver se assim é, se ela existe efectivamente.
A experiência que temos a nível nacional é má. O parlamento tem dado péssimas lições de democracia, pois vemos e aturamos debates que causam repulsa. Os que estão no poder afirmam que fazem tudo bem e atacam a oposição que traria a desgraça se fosse poder. A oposição faz o mesmo, ao contrário. É raríssimo por parte da maioria reconhecer sem reservas um erro e a oposição faz o mesmo, não admitindo, sem reservas, uma coisa bem feita. Como queremos que tenhamos o devido respeito por uma tal instituição?
Também a nível local (e também a nível das regiões autónomas) a democracia deixa muito a desejar: os locais onde se tomam as principais decisões a nível local (desde logo as assembleias municipais), reproduzem, muitas vezes para pior, os vícios parlamentares. A cultura da livre circulação da informação, da responsabilidade, da prestação pública de contas, são maltratadas nas principais fontes da nossa democracia.
Restam as universidades. Estas têm hoje um regime de governo, nomeadamente ao mais alto nível, que cumpre exigências da democracia. Tem um órgão deliberativo máximo que é o conselho geral constituído por representantes democraticamente eleitos pelos professores, pelos estudantes e, em regra, também pelos funcionários. A estes acrescem cerca de 30% de elementos externos (personalidades de reconhecido mérito) que são cooptados pelos eleitos e assim estão legitimados democraticamente, enriquecendo o órgão.
Cabe ao conselho tomar as principais deliberações quase todas sob proposta do Reitor e que este deve depois executar. Ora este órgão pode (deve) dar exemplo de democracia, exemplo que sirva para o país. E tem obrigação disso, pois se trata da instituição nacional que tem mais responsabilidades. Quando falamos de universidades, falamos de pessoas que exactamente por serem universitários, têm especial responsabilidade cultural e cívica.
Por isso, as atenções devem estar voltadas para o funcionamento da democracia nas universidades, desde logo ao nível do seu órgão máximo, observando os passos que caracterizam a democracia: divulgação da informação, debate dos assuntos que precisam de ser resolvidos, deliberações devidamente fundamentadas, publicidade das mesmas, execução e apreciação da execução (prestação de contas).
É assim que se passa? Esta experiência de governo democrático das universidades decorre desde há dois anos e importa verificar o que se tem passado. Mas, estranhamente, aqui a informação falta. Dificilmente encontraremos um lugar onde a possamos encontrar. Não há, por exemplo, relatórios sobre o funcionamento dos conselhos gerais. E deveria haver.
Mas o que mais estranho pode suceder, do ponto de vista democrático, é que haja universidades públicas que queiram colocar o poder último nas mãos de um enigmático “conselho de curadores”, órgão composto por cinco elementos de elevado mérito, nomeados pelo governo, ainda que sob proposta da Universidade. Para isso não se importam de passar ao regime fundacional (“falsas fundações”, aliás, como bem refere Vital Moreira, pois não possuem um património do qual possam viver).
Pode haver razões (e boas razões, porventura), mas razões democráticas não serão seguramente. Ao que se afirma, são razões financeiras. A submissão à tutela de um conselho de curadores é o preço por uma autonomia financeira, prometida pelo governo. É uma exigência pelo menos estranha. É assim algo como: vendam a autonomia democrática se quiserem ter mais dinheiro. Será que o governo e o parlamento também pensam que a democracia é o pior dos regimes, com a excepção de todos os outros?
António Cândido de Oliveira
Professor da Universidade do Minho
[Reprodução de anexo de mensagem entretanto distribuída universalmente na rede electrónica da UMinho pelo seu autor, com o seguinte texto de encaminhamento:
Porque o debate é preciso, tomo a liberdade de enviar, com pequeníssimas modificações, texto saído hoje no jornal "Público".
Com as melhores saudações,
António Cândido de Oliveira]
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