«Seria progresso
o ensino politécnico passar a conceder doutoramentos ainda que mesmo sob a
argumentação confusa da diferenciação entre doutoramentos universitários e
doutoramentos politécnicos?
“A
história é émula do tempo, repositório de factos, testemunho do passado,
exemplo do presente, advertência do futuro” (Miguel Cervantes).
Durante
anos, porfiei na procura da letra de uma lengalenga da minha meninice que se me
negava na neblina da memória. Já desesperançado, finalmente, deparei-me com ela
numa crónica de António José Saraiva, “um dos espíritos mais fascinantes da
cultura portuguesa contemporânea” (José Mattoso),intitulada “A lógica do
macaco”: “Do meu rabo fiz navalha / Da navalha fiz camisa / Da camisa fiz
farinha / Da farinha fiz menina / Da menina fiz viola / Trim tim tim que vou
para Angola” (“Jornal de Letras”, 06/07/1982).
Mutatis
mutandi, encontro analogia entre esta lengalenga de metamorfoses e o percurso
feito pelo ensino superior politécnico que de um diploma de curta duração (dois
anos) fez um bacharelato; de um bacharelato fez uma licenciatura; de uma
licenciatura fez um mestrado; e de um mestrado pretendia fazer um doutoramento.
Aliás, nihil
novi sub sole! Anos atrás, foi defendida por Rui Antunes, presidente do
Instituto Politécnico de Coimbra, a proposta: “A cidade de Coimbra só teria a
ganhar se o Instituto Politécnico de Coimbra continuasse a fazer o mesmo que
tem feito até aqui com o nome de Universidade Nova de Coimbra” (Diário de
Coimbra, 10/11/2005). Quem sabe se por ter dado pelo plágio relativamente
ao nome da Universidade Nova de Lisboa, volta ele à carga propondo, agora, lato
sensu, a crisma de ensino politécnico para “Universidade de Ciências
Aplicadas” (Diário As Beiras, 05/08/2013).
Em
oposição, e com o apoio do movimento associativo estudantil, António Cunha,
presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP),
discorda com o fim do sistema binário de ensino superior: “Temos sempre
defendido o aprofundamento do sistema binário e uma maior diferenciação entre
os sistemas” (PÚBLICO, 08/07/2015).
No ano em
curso, sai reforçada esta posição reitoral com a notícia intitulada:
“Universidades estão contra doutoramentos em politécnicos” (PÚBLICO,
17/06/2016). Dela relevo as seguintes passagens:
“Os
reitores das universidades públicas não querem que os politécnicos passem a
atribuir doutoramentos. A medida está a ser estudada pelo Governo e corresponde
a uma a uma ambição antiga dos institutos superiores. Em comunicado, os
responsáveis universitários defendem que essa solução vai criar uma maior
confusão entre as missões dos dois subsectores e será prejudicial para o ensino
superior”.
Em
relação à semana anterior, era, também, aí referido que “o Governo está a
estudar esta possibilidade e tem-na discutido com os responsáveis das
instituições de ensino superior. O que está em cima da mesa não é a atribuição
de doutoramentos académicos, o modelo clássico, que se mantém como um exclusivo
do sector universitário”.
Em
tentativa de quem procura saída para o beco em que se tinha metido, era
esclarecido pelo Governo “ que os politécnicos correspondem à fileira
profissional dentro do ensino superior e, portanto, devem poder dar cursos de
doutoramento com uma componente profissional ou tecnológica”.
Ao
arrepio do “soberaníssimo bom senso”, de que nos falava Antero, a tutela da 5
de Outubro abre portas com a habilidade de as fechar quando as dobradiças
começam a ceder. Assim, passados escassos dias, sai neste mesmo jornal uma
outra notícia, desta feita, intitulada “Politécnicos não vão formar doutorados”
(22/06/2016), esclarecendo que [em audição parlamentar], “o ministro da Ciência
e Ensino Superior, Manuel Heitor, afirma que não pretende permitir que os
institutos politécnicos passem a oferecer doutoramentos”, reforçando ser necessário
“aumentar as diferenciações entre as instituições de cada um do subsistemas”.
Ou seja, descalçando botas que lhe pudessem vir a criar joanetes justificava-se
o ministro com ”toda a sua abertura ao debate”.
Pelo
poeta polaco Stanislaw Lec, foi levantada a seguinte interrogação: “Será
progresso um canibal usar garfo e faca?” Analogamente, seria progresso o ensino
politécnico passar a conceder doutoramentos ainda que mesmo sob a argumentação
confusa da diferenciação entre doutoramentos universitários e doutoramentos
politécnicos, numa espécie de classificação de doutoramentos de primeira e
doutoramentos de segunda?
Num país
em que, não poucas vezes, se protege o atrevimento, se enaltece a ignorância e
se honra o demérito não seria ocasião soberana para se definirem, de uma vez
por todas, sem ser a reboque de pressões sindicais, políticas ou de qualquer
outra natureza, as linhas orientadoras do sistema oficial de ensino superior?
Me arreceio que, em procrastinação, tão ao jeito dos poderes decisórios
nacionais, se deixe, uma vez mais, a solução definitiva desta magna questão
para as calendas gregas, em desacerto com o preconizado por Victor Hugo: “Saber
exactamente qual a parte do futuro que pode ser introduzido no presente é o
segredo de um bom governo”.»
RUI J. BAPTISTA
(reprodução de artigo de opinião Público online, de 11/07/2016)
[cortesia de Nuno Soares da Silva]
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