«Graças a um acordo entre duas universidades privadas, uma portuguesa e outra espanhola, vinte alunos de Ciências Biomédicas estão em Madrid a estudar Medicina. Em Portugal não entraram por décimas ou centésimas. Ordem dos Médicos diz que estão a “contornar sistema de ensino superior".
Quando Filipa Soares, 22 anos, descobriu que poderia fazer o equivalente a metade dos seis anos de Medicina em Portugal e os restantes na Universidad Alfonso X El Sabio (UAX), em Madrid, poupando tempo e dinheiro, nem pestanejou. O sonho estava ali a uma distância de três anos e a mais de 500 quilómetros de casa. Só tinha de se licenciar em Ciências Biomédicas e fazer 50 créditos em cadeiras extra-curriculares, na Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário (CESPU), em Gandra, Paredes. Mais os exames de admissão ao quarto ano da universidade madrilena.
Ela e mais 19 colegas de turma, com médias a rondar os 15 e os 18 valores, que, por décimas ou centésimas, se viram privados de seguir o sonho nas universidades públicas portuguesas. Aproveitaram um acordo, firmado em 2012, entre as duas instituições privadas que prevê, anualmente, 30 vagas para os finalistas de Ciências Biomédicas, mas com determinados requisitos a cumprir. O próprio plano curricular do Instituto Universitário de Ciências da Saúde (IUCS) da CESPU foi ajustado ao da universidade madrilena para que os estudantes portugueses estejam equiparados aos espanhóis e tudo corra sobre rodas. Como aconteceu com Filipa Soares, de Vila Nova de Gaia, cada vez mais convencida de que fez a melhor escolha ao desistir do ingresso, com uma média de 16,6 valores, no curso de enfermagem, para estudar em Gandra e depois ser médica como a mãe. “Sem sombra de dúvida, a CESPU abriu-nos a porta para conseguir aquilo pelo qual sempre lutei e ainda nem acredito que o estou a viver”, diz, entre risos, mãos nos bolsos da bata branca e estetoscópio, que usa nas aulas práticas no hospital, à volta do pescoço.
Recomenda? “Claro que sim! Quem quer ser médico e por cá não consegue por causa das médias demasiadas altas, tem aqui uma boa oportunidade. Tenho amigos que entraram no primeiro ano noutras universidades estrangeiras e nós tivemos a sorte, mas com esforço, de o fazer directamente no quarto ano”, responde logo Filipa, com olhar brilhante. Também uma colega e amiga, que prefere não dar o nome, vê aqui a oportunidade ideal para conseguir “ser médica de tudo”, como em miúda costumava dizer. Ainda que por agora ande indecisa entre medicina interna, pediatria ou geriatria. “Mas vale mesmo a pena. Começámos com receio em Madrid, mas depois o ano correu muito bem e passámos para o quinto sem nenhuma disciplina em atraso”, conta.
As reservas da Ordem dos Médicos
As duas jovens e os restantes colegas, que já percorrem os corredores da UAX há quase um ano, vão, em Setembro próximo, “apadrinhar” e ajudar a ambientar 13 novos colegas acabados de se licenciar em Ciências Biomédicas, que, como eles, têm a hipótese de seguir a carreira que desejam. “Espanha dá-me a oportunidade que o meu país não deu: concretizar o sonho de ser médico”, desabafa José Carlos, 20 anos, desiludido com o sistema universitário português. O jovem de Valongo trocou o ingresso em engenharia mecânica na Universidade Nova de Lisboa pela CESPU para depois ir para Madrid. Tinha uma média de pouco mais de 16 valores, a mesma com que vai agora para Espanha.
Quem não se deixa convencer por estes argumentos é o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, que apenas ouviu falar da CESPU e desconhece o seu curso de Ciências Biomédicas assim como o de Medicina da universidade madrilena. Também não tem conhecimento “dos pormenores” do acordo entre as duas universidades privadas que não vê com bons olhos e considera tratar-se de “uma forma de contornar o sistema de ensino superior português, diz numa entrevista por telefone. “No país, isto só acontece na CESPU.”
O presidente da faculdade, Almeida Dias – que já foi professor de Fisiologia na Faculdade de Medicina no Porto –, contesta e assegura tratar-se, sim, de “uma forma legítima de os alunos, que não conseguiram entrar por décimas ou centésimas, nas universidades portuguesas, verem os seus sonhos realizados”, como aconteceu com Mariana Pereira, 20 anos, que desistiu do ingresso em Farmacêutica, com uma média de 18,6 valores, para se candidatar a Ciências Biomédicas. "Só assim poderia seguir Medicina”, explica, satisfeita. “Por a CESPU ser privada, as pessoas pensam que as coisas são dadas de mão beijada, mas tive de trabalhar muito para ser admitida na universidade madrilena com uma média de 17 valores”, garante.
Completar quatro anos em três
“Estes alunos são heróicos, porque fazem quatro anos em três e há um esforço muito grande para se equipararem aos colegas espanhóis”, considera o coordenador do curso de Ciências Biomédicas, Ricardo Dinis. “Além de terem de frequentar, durante uma semana, em Madrid, uma disciplina de dissecação anatómica para depois irem a exame”, informa o presidente da CESPU que assegura que os alunos saem muito bem preparados da privada portuguesa. “É que por aqui não há facilitismos. Prova disso é o melhor estudante de Medicina, na UAX, ser um dos nossos licenciados que lá ingressaram, no último ano lectivo, segundo o decano de lá”, afirma, o coordenador do curso português. Sabe também, de antemão, que todos eles podem depois seguir carreira em Portugal, porque existe livre circulação de profissionais na União Europeia. O PÚBLICO tentou ouvir os responsáveis do curso da universidade madrilena, mas estes não estavam disponíveis.
Até aqui tudo bem e o bastonário concorda que o podem fazer por cá; mas só “se o curso for reconhecido em Espanha e desde que cumpram os requisitos legais, os licenciados podem inscrever-se na Ordem dos Médicos”. José Manuel Silva ressalva, contudo, que “a Ordem não garante a qualidade dos médicos, porque não faz avaliação às qualificações da preparação académica”. Pode depois acontecer não terem vagas de especialidade por cá, tendo em conta que, em Junho deste ano, 158 profissionais ficaram de fora das 1675 existentes.
Ainda assim, o bastonário lembra que nunca foi aprovado um curso de medicina privado em Portugal, porque “todas as universidades candidatas, até hoje, apresentaram défice de qualidade”. E chama a atenção para o facto de ser “muito exigente criar um curso de medicina, que requer um corpo docente preparado e muito variado. Também sem um hospital não é fácil”. O que já não é problema para a CESPU, assegura o presidente desta instituição “detentora de 79 por cento do capital social do hospital particular de Paredes, com um corpo de docentes e investigadores, mais de cem doutorados, e instalações mais do que adequadas”. Vai, por isso, concorrer – há mais de uma década que o faz – à criação da licenciatura de medicina, “porque é preciso perceber o ridículo que é não se aprovar o curso só porque é do sector privado”.
Um ano "prático e exigente"
Filipa Soares ainda nem acredita que vai para o quinto ano em Setembro. Tem “as pestanas queimadas de tanto estudar” para o provar, diz. “Foi um quarto ano muito prático, difícil e exigente. Tínhamos de ir, três vezes por semana, para o hospital e não passei logo na época normal dos exames, mas sim, na de recurso. O que nunca me tinha acontecido”, conta entusiasmada por, ainda assim, o curso lhe ter surpreendido pela positiva. “Até já suturei no final de uma cesariana, numa das aulas práticas no Hospital San Francisco de Asís. É uma experiência incrível pôr as mãos na massa”, diz a rir. Mas não estava verde de todo, porque “já tinha treinado em carne de animais, em modelos, no terceiro ano, no âmbito dos procedimentos médico-cirúrgicos, uma das disciplinas extra-curriculares” que teve de frequentar na CESPU para ter equivalência aos primeiros três anos da UAX.
Durante o primeiro parto natural a que assistiu, a jovem emocionou-se tanto que até chorou. Entre assistir a cirurgias de otorrinolaringologia e aprender com os médicos como informar os familiares dos utentes do seu estado, muitas foram as experiências vividas que tão cedo não vai esquecer. Assim como a amiga Joana Pereira, ainda que considere que este primeiro ano, em Madrid, não foi fácil. “No início, tive dificuldade em fazer uma história clínica do paciente e notei que os colegas espanhóis estavam bem mais à vontade. Mas com o tempo lá consegui.”»
(reprodução de notícia PÚBICO online, de 22/08/2016)
[cortesia de Nuno Soares da Silva]
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