domingo, 20 de setembro de 2009

O Processo de Bolonha: não tomar a retórica e a burocracia pela realidade!

A UM teve há algum tempo uma referência externa elogiosa no que diz respeito à incrementação do processo de Bolonha. Ficamos orgulhosos! Do que se tratava mais não era do que a relativa brevidade com que construímos as grelhas curriculares dos cursos em conformidade com os formalismos requeridos, passando as actividades lectivas a funcionar de acordo com a nova arrumação das UCs. Ora, o que é que isso nos diz, em termos substantivos, quanto à real incrementação da profunda renovação do ensino que é preconizada? Eu diria que muito pouco ou quase nada. Quanto mais depressa se fazem esses arranjos, menos se pensa e mais ilusória se torna a ideia de inovação. Ser-se “bom aluno” nas formalidades burocráticas, que colocam no papel o que não corresponde a uma realidade, é contrário de uma acção crítica e reflexiva. A percepção que tenho e as opiniões que vejo em muitos colegas é que a qualidade dos cursos não melhorou... Oxalá possamos vir a dizer que esta situação resulta das contingências do processo de transição.

A notícia do estudo encomendado pela Gulbenkian sobre a implementação do Processo de Bolonha http://aeiou.expresso.pt//universidades-devem-reforcar-autonomia-dos-estudantes=f536597 diz-se que os investigadores concluíram o seguinte:

Quanto à promoção da autonomia do estudante, os investigadores concluíram não ser óbvio que haja "estratégias claras" para concretizar este princípio. Nalguns casos, o caminho seguido foi precisamente o contrário, com a introdução de mecanismos de controlo de assiduidade.

Sobre a questão da autonomia do aluno retomo o que já escrevi neste fórum:

(…) a questão central que tem que ser encarada é seguinte: os novos papéis a assumir pelos alunos só poderão ocorrer se forem induzidos pelos docentes. A aprendizagem centrada no aluno não é algo que possa tornar-se realidade por via da concessão de mais tempo de estudo e mais espaço de participação, esperando-se que desse modo o aluno assuma maior protagonismo. A aprendizagem centrada no aluno e a autonomia são construções complexas de que o docente é um obreiro da maior importância.

Há dias, dizia-me uma colega da Universidade Clássica de Lisboa que, tendo sido concedida aos alunos uma semana de dispensa de aulas para trabalho autónomo, o que aconteceu foi que eles fizeram as malas e foram para casa.

Na ideia do estudo da Gulbenkian, de que o controlo da assiduidade é contrário à promoção da autonomia, há um grande equívoco quanto ao modo de lidar com a escassez de sentido de responsabilidade que abunda nas nossas universidades - esta questão é particularmente sensível quando falamos dos primeiros anos. Por outro lado, na linha do que antes referi, como pode o docente exercer a sua função de construtor da autonomia do aluno, com menos tempo lectivo presencial e sem garantia da assiduidade dos alunos nesse tempo mais escasso?

O meu ponto de vista é outro, já aqui expresso:

Não tenhamos medo das palavras: só uma acção disciplinadora permitirá operar mudanças significativas nos hábitos profundamente arreigados dos alunos. A assinatura de trabalhos nos quais não se teve efectiva participação, o jogo de falsificações de assinaturas nas folhas de registo de frequência às aulas, o abandono da sala a meio das aulas, sem justificação, são algumas das práticas, entre outras, que não são compatíveis com uma ética de responsabilidade.

Fala-se também nas dificuldades de ordem financeira. Mesmo que esse argumento tenha algum fundamento, é oportuno lembrar que a "falta de condições" é um argumento muito recorrente, entre os docentes de outros graus de ensino, para justificar a "impossibilidade" de um ensino de melhor qualidade. Existem por outro lado umas teorias da educação que tudo fazem depender de um tal "sistema", da gestão e da organização, das políticas, do governo, etc. dando uma boa ajuda à desresponsabilização individual dos professores. É que as maiores dificuldades da inovação não residem no hardware físico, residem antes no "software" humano, sendo por isso fácil cair-se na tentação da "falta de condições". Mesmo em estudos considerados rigorosos à luz de determinados padrões.

As inovações previstas nos enunciados do processo de Bolonha configuram uma transformação profunda da cultura universitária, de natureza holística e abrangente, que não se vislumbra no horizonte próximo. É precisso assumir isso com clareza, com a noção de que uma realidade humana tão complexa como é o ensino em instituições vincadamente conservadoras, não é transformável em curto espaço de tempo pelo voluntarismo, pelo desejo ou imperativos normativos impostos externamente. Todavia, isso não significa que os docente não tenham nas suas mãos, pela sua acção própria, a possibilidade de serem agentes de transformação, sem estarem à espera de um sistema inovador que não vai chegar. A aprendizagem, enquanto processo holístico em que se interpenetram a linguagem, a comunicação, o pensamento e a responsabilidade, recomendam fazer de cada Unidade Curricular um espaço de formação em que estejam presentes algumas dimensões transversais, a saber:

a) promover uma ética de rigor, disciplina e responsabilidade;

b) promover o hábito de pensar, pelo questionamento;

c) promover as competências de comunicação oral e escrita;

d) promover competências de pesquisa e de análise crítica da informação.

Joaquim Sá

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